Repertório 451 MHz,

Relatos de um certo autor

Milton Hatoum diz que nunca mexe nos livros que lançou, porque as obras publicadas pertencem aos leitores

24nov2023

Está no ar o centésimo episódio do 451 MHz, o podcast da revista dos livros. É isso mesmo: chegamos à marca histórica de cem episódios. Para celebrar, o convidado é o escritor Milton Hatoum, um dos maiores nomes da literatura brasileira contemporânea. Milton não só nasceu em Manaus, como carrega o nome da cidade como um apelido entre os amigos mais próximos. Seus livros estão ganhando novas edições pela Companhia das Letras, acrescidos de posfácios assinados por críticos literários. Nessa conversa, ele fala sobre o relançamento e adaptações de sua obra, seus hábitos de escrita e leitura e sua relação com a Amazônia e o mundo árabe. Este episódio tem apoio do Instituto Cultural Vale, por meio da Lei de Incentivo à Cultura (leia a transcrição do episódio).

Livros relançados

O escritor, tradutor e professor manauara, que completou 71 anos em 2023, teve um ano de reconhecimento de sua obra. Desde o final de 2022, a Companhia das Letras vem relançando alguns dos seus títulos mais emblemáticos, como os romances Dois irmãos e Cinzas do Norte, além da coletânea de contos A cidade ilhada, em edições especiais, com posfácios de grandes nomes da crítica brasileira e fotos de capa de Luiz Braga, que retrata há décadas a Amazônia.

Na conversa com o editor Paulo Werneck, Milton Hatoum conta que não costuma reler ou alterar os livros relançados, alguns deles com mais de trinta anos da primeira publicação. “Uma vez publicado o livro, ele pertence ao leitor”, disse. “Mas nunca mexo no texto porque se eu reler vai dar vontade de alterar.” No começo de 2024, segundo Hatoum, serão relançados também Órfãos do Eldorado e Relato de um certo Oriente.


Milton Hatoum, que teve parte da obra relançada este ano pela Companhia das Letras [Renato Parada/Divulgação]

Ao comentar sobre Relato de um certo Oriente, romance que tem uma mulher como narradora, o escritor enfatiza a importância de explorar a alteridade na literatura. “Tantas escritoras assumiram uma voz masculina para escrever seus livros. Virginia Woolf, por exemplo, uma das maiores escritoras do Ocidente. Isso é totalmente possível. Literatura não está limitada a uma voz única”, disse.

O escritor também cita como exemplo o romance O quarto de Giovanni, do norte-americano James Baldwin, cujo protagonista é, diferente dele, um homem branco. “A editora não queria publicar, dizendo que o público dela era de leitores negros. Mas ele queria escrever sobre a experiência dele em Paris, do ponto de vista de um americano rico que se apaixona por um italiano.”

       

    

Leitura e memórias

Disciplinado, o escritor fala sobre sua rotina diária de trabalho, que inclui mais horas de leitura do que de escrita. Hatoum afirma que não tem uma meta de páginas por dia. “A escrita não pode ser obrigação. Borges dizia que não se pode ser poeta das oito da manhã às cinco da tarde. E acho que isso serve para a prosa também”, pontuou. “Escrevo quando me dá vontade. Às vezes, não escrevo nada.”

Com dois volumes da sua trilogia de memórias publicados, o escritor conta que também não costuma escrever diários. Algumas anotações que fez no início dos anos 70, quando morava em Brasília, afirma, serviram de base para o primeiro volume, A noite da espera. Já o segundo, Pontos de fuga, usou diários de amigos do escritor.

“Muitos amigos daquela época foram presos, torturados. Não usei as palavras deles, mas foram emissores de ideias para criar personagens. Por isso demorou dez anos para escrever a trilogia”, diz ele, que ainda deve lançar o terceiro título.

  

Amazônia

Com romances ambientados na Amazônia e que também tratam da devastação da região, Hatoum lembra que a destruição mais sistemática começou ainda nos anos 70, durante a ditadura. O escritor, que se formou em arquitetura e urbanismo na USP nesta época, conta que alguns amigos fizeram uma viagem pela Amazônia e o convidaram para escrever textos para um livro denunciando o crescente extermínio da floresta.

“Naquela época ainda, já existia projeto do governo de ocupação da Amazônia. Toda uma rede de estradas que rasgava a floresta e invadia terras indígenas”, afirma.

Apropriação x imaginação

Outra expedição à Amazônia comentada por Hatoum é a do escritor Mário de Andrade, que resultou no livro O turista aprendiz, relato de viagens do autor de Macunaíma pelas regiões Norte e Nordeste. 

“É um dos livros fundamentais da literatura brasileira. Claro que Mário se apropriou das narrativas indígenas, mas todo escritor ou escritora se apropria de alguma coisa”, diz o escritor. Em 2021, Cristino Wapichana escreveu na Quatro Cinco Um sobre como Mário de Andrade reforçou em Macunaíma o sentimento anti-indígena dos brasileiros.

Para Hatoum, quando você lê um livro de contos de Jorge Luis Borges ou o clássico Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, está lendo também uma biblioteca formada pelos autores que o escritor leu.

“Não gosto dessa onda pós-moderna que tenta tirar o valor da obra e apenas classificá-la em jargões, seja identitário, racial… Literatura não é isso. Ela faz muito mais perguntas do que dá respostas. Se a gente começar a limitar aquilo que a literatura expande — porque essa é a fundação da arte, expandir nossa imaginação, estimular dúvidas — vai ser uma tese, uma explicação daquilo que é supostamente politicamente correto?”, questiona.

   

Questão palestina

Com família de origem libanesa, Hatoum vem acompanhando com atenção a guerra entre Israel e palestinos na Faixa de Gaza e cita alguns escritores e historiadores que escreveram livros fundamentais sobre o assunto.

  

“Quando você lê um livro como o do historiador israelense Ilan Pappé, chamado A limpeza étnica da Palestina, você entende que o que está acontecendo hoje já aconteceu em 1948, com massacres e devastações de mais de quinhentas aldeias e cidades palestinas e isso nunca parou”, diz. “Edward Said fala muito sobre isso em A questão da Palestina.”

Mais na Quatro Cinco Um

Em maio, em entrevista a Helena Aragão, Milton Hatoum falou sobre o deslocamento como tema e como acompanhava adaptações, revisava ensaios e finalizava a trilogia de romances de formação. Em junho, ele esteve n’A Feira do Livro. Em uma mesa pontuada por arte e política, o escritor disse acreditar que o país deve se recuperar dos ataques à cultura e à educação

Hatoum também assinou alguns textos na revista dos livros. Em 2019, ele se manifestou sobre uma declaração do então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, sobre o ambientalista Chico Mendes, e de como, na sua opinião, lembrava os "trogloditas" denunciados por Euclides da Cunha. O escritor também resenhou o livro Meu nome é Adam, primeiro volume da trilogia de Elias Khoury, que restitui as lembranças das vítimas silenciadas do êxodo palestino; e o ensaio O naufrágio das civilizações, do escritor libanês Amin Maalouf, que questiona como os herdeiros das maiores civilizações se transformaram em grupos raivosos e vingativos.

O melhor da literatura LGBTQIA+

O escritor Tobias Carvalho, autor de Quarto aberto, lançado pela Companhia das Letras, indica Meu irmão, eu mesmo, de João Silvério Trevisan, publicado este ano pela mesma editora.

“Trevisan segue no projeto de escrever romances autobiográficos. Ele já tinha feito isso com Pai, pai, que é um livro lindo, mas acho que Meu irmão, eu mesmo é melhor ainda”, diz Carvalho. “Esse livro conta a história do irmão do autor, que estava sempre com ele na militância, numa época em que ele teve diagnóstico de HIV enquanto o irmão teve um diagnóstico de câncer. É um documento histórico lindo, que diz muito sobre os dias de hoje.”

Confira a lista completa de indicações dadas no podcast 451 MHz, no bloco O Melhor da Literatura LGBTQIA+.

O 451 MHz é uma produção da Rádio Novelo e da Associação Quatro Cinco Um.
Apresentação: Paulo Werneck
Coordenação Geral: Évelin Argenta e Paula Scarpin
Produção: Ashiley Calvo
Edição: Luiza Silvestrini
Produção musical: Guilherme Granado e Mario Cappi
Finalização e mixagem: João Jabace e Luis Rodrigues, da Pipoca Sound
Identidade visual: Quatro Cinco Um
Coordenação digital: Bia Ribeiro
Para falar com a equipe: [email protected]